Publicado: 09/10/2008
Em Debate Especial: Carga Tributária
Carga tributária e cidadania
Ércio Zilli
Consultor
Ao alinhavar as primeiras idéias para a redação deste texto cogitei de abordar questões de natureza técnica, como os conceitos de seletividade e essencialidade mencionados na Constituição Federal, e de tentar caracterizar a essencialidade dos serviços de telecomunicações. Mas logo desisti, pois num lampejo de lucidez ocorreu-me que careço tanto de fundamentação teórica como de habilidade no manejo desses conceitos para produzir alguma coisa minimamente convincente. Resolvi então adotar uma outra abordagem para o assunto, sem me limitar previamente com algum tipo de auto-censura, com a pretensão de que este texto, com a generosidade de quem o ler, possa provocar alguma reflexão e, preferencialmente, alguma conseqüência.
Lembro-me que no Futurecom de 2007 participei de uma mesa redonda em que a questão tributária era o foco da discussão. No último bloco do evento, quase no fim do debate, alguém da platéia me fez uma pergunta em que sugeria que as prestadoras de serviços de telecomunicações deveriam atuar com mais intensidade e desenvoltura para reduzir a carga tributária incidente sobre os serviços que prestam.
A pergunta colheu-me de surpresa, pois jamais esperaria que ela viesse de uma platéia com a qualificação dos freqüentadores do Futurecom. Respondi, um tanto improvisadamente, que as operadoras vinham sendo, na prática, uma das poucas vozes a se manifestar sobre o assunto, e que os maiores interessados, os usuários dos serviços, é que deveriam expressar sua insatisfação com a escorchante magnitude dos impostos que pagam.
Depois do encaminhamento ao Congresso Nacional, pelo Governo, no início de 2008, de mais uma proposta de emenda constitucional sobre o assunto, dediquei mais tempo a ele, e passei a abordá-lo em todas as oportunidades que me foram oferecidas. Numa delas, um seminário sobre defesa do consumidor realizado em Brasília poucos meses atrás, participei de um painel e encerrei minha apresentação mostrando o impacto crescente dos impostos sobre os serviços de telecomunicações e o risco de que essa carga possa ser aumentada em decorrência da reforma tributária ora em discussão no Congresso.
Na platéia, como seria de se esperar, numerosos advogados atuantes no setor, consumeristas eméritos; na mesa, também expoentes dessa especialidade. E novamente a surpresa: a única reação a minha apresentação veio de um ilustre representante de alta estirpe do Ministério Público, que entendeu minha fala como uma espécie de “choro” e disse que as empresas, no seu entendimento altamente lucrativas, devem mesmo pagar impostos elevados, e que a discussão do tema carga tributária era totalmente inadequada e descabida num seminário sobre defesa do consumidor.
Fiquei muito preocupado. Provavelmente eu deveria estar equivocado ao associar carga tributária e defesa do consumidor. Minha área de formação não é o Direito, e eu estava em um evento, como disse, cujos participantes eram em sua grande maioria advogados. Assim, achei melhor não retrucar.
Mais recentemente, ao ver apresentações feitas por diversos especialistas na Comissão Especial da Câmara dos Deputados que examina a proposta de reforma tributária, deparei-me com uma, feita por ilustre especialista em economia e dirigente de uma respeitada organização governamental, em que o autor pretende demonstrar que a carga tributária no Brasil é suportada, em cerca de dois terços, pelas “grandes empresas”, e que as famílias pagam menos de 18% dela.
Minha preocupação aumentou, provavelmente porque minha área de formação também não é a Economia.
Mas essas experiências me sugerem que a população brasileira, de modo geral – e independentemente de seu grau de escolaridade – desconhece praticamente tudo o que se refere a impostos, taxas e contribuições, principalmente sobre quem é, ao fim e ao cabo, que efetivamente os paga.
Em outras palavras, parece-me que, perante o Fisco, a população é hipo-suficiente.
Ora, uma das principais razões para edição do Código de Defesa do Consumidor foi a condição de hipo-suficiência dos consumidores em relação aos fornecedores. Na minha condição de leigo em matéria de Direito posso perguntar por que essa condição de hipo-suficiência não poderia, então, ser motivo para edição de um “Código de Defesa do Pagador de Impostos”. Como desconheço qualquer iniciativa nesse sentido, receio que essa pergunta possa ser totalmente descabida. Mas deixo-a lançada, correndo esse risco.
A primeira questão que dela decorre é a mais elementar: defender do que o pagador de impostos? A resposta também é óbvia: do Estado. Ora, mas o que deve defender o cidadão do Estado não é a Constituição? Não foi essa a idéia expressa pelo saudoso deputado Ulysses Guimarães quando se referiu, vinte anos atrás, à “Constituição cidadã”? Acredito que sim.
Lembro-me, de minha infância no interior, de conversas sobre o que bem mais tarde vim a saber tratar-se do regime de exploração das fazendas de café. O proprietário permitia aos colonos cuidar do cafezal e explorar a terra para subsistência mediante o pagamento de metade da produção. Os colonos que aceitavam essa condição eram chamados de “meeiros”.
Na melhor das hipóteses, o “trato” (isto é, o contrato) poderia prever o pagamento de 40% da produção ao proprietário da terra. Todos os riscos eram bancados pelos colonos. Essa forma de exploração acabou não dando certo e foi abolida porque se cristalizou o entendimento de que ela se aproximava perigosamente de um regime semi-escravista.
No Brasil de hoje, os dados oficiais indicam que a carga tributária se aproxima dos 40% do PIB. No segmento de telefonia móvel, em 2007 os tributos indiretos (ICMS, PIS e COFINS) e as contribuições (FUST e FUNTTEL) e taxas setoriais (Fistel) representaram 46,9% da receita líquida das empresas prestadoras. Só os impostos indiretos aumentam o custo do serviço para o consumidor entre 40 e 63%, dependendo do estado, em função da alíquota de ICMS. Qual é a diferença desse quadro para a situação dos “meeiros”?
Como estou tratando de um tema totalmente alheio a minha formação, ouso continuar abusando do espaço que me foi concedido para expressar duas idéias para provocar (mais ousadia ainda!) reflexão e debate.
A primeira delas já me rendeu algumas escaramuças. É a tese da “necessidade de preservar a arrecadação”. Do Estado, bem entendido. Sempre que se inicia uma discussão sobre o peso da carga tributária alguém invoca essa tese e o debate termina. Isso é conseqüência direta da necessidade de, antes de se discutir reforma tributária, discutir-se reforma fiscal. Reforma fiscal nada mais é do que uma maneira elíptica de se referir ao tamanho e ao volume de gastos do Estado. Na vida privada, nas famílias, “reforma fiscal” é adequar os gastos àquilo que se ganha. No Estado, tem sido aumentar a arrecadação para fazer frente a gastos cada vez maiores – e quase sempre com custeio.
Esse quadro me sugere – e aí novamente tenho de penitenciar-me por não ser a História a minha área de formação – algo ocorrido no Brasil no século XVIII. Havia então o chamado “imposto do quinto”, cobrado pela Coroa portuguesa – 20% da produção (principalmente de ouro). Caiu a produção, e o quinto passou a ser insuficiente; veio daí a exigência das 100 arrobas de ouro. Não havendo ouro, deveria ser arrecadado o equivalente – a “derrama”. O fim dessa história todos conhecem, e espero sinceramente que não seja repetido.
A segunda idéia, que pode ser uma derivação da primeira, decorre de uma visão expressa em escritos tão distintos como a Bíblia e as tiras humorísticas de “Hagar, o horrível”. Aqui também tenho de esclarecer que essas não são minhas áreas de formação. Mas acho que na Bíblia os cobradores de impostos são identificados como representantes do poder político e como seres desprovidos de qualquer resquício de piedade. Nas tiras de humor eles são retratados com vestes pretas, capuzes e uma arma branca ao ombro; desconfio que isso tenha o mesmo significado que na Bíblia.
A tese da “preservação da arrecadação” é a tese dos cobradores de impostos.
Talvez o que mais me incomode seja o fato de que tanto os cobradores de impostos como a própria população referem-se aos pagadores de impostos como “contribuintes”. Para mim, a palavra “contribuir” transmite a idéia de algo feito voluntariamente, espontaneamente. Se somos “contribuintes”, por que usamos, para designar aquilo que pagamos, o nome “imposto”, que vem de imposição?
Para concluir: se o “Código de Defesa dos Pagadores de Impostos” é a Constituição, devemos – os pagadores de impostos – cuidar para que ela não seja escrita, ou reformada, pelos cobradores de impostos. Pelo menos não exclusivamente.
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Muito oportuno o artigo publicado. O que muito chama a atenção de imediato é a suposta postura de nosso Ilustre representante do Ministério Público, ao afirmar que o setor de Telecomunicações deve pagar mais Imposto porque fatura alto e que isso nada tem a ver com Código de Defesa do Consumidor! Vejo como lamentável e triste a constatação de termos representantes com esse nível de pensamento, preparo e valores. Posturas essas que maculam uma das Instituições mais Nobres da Sociedade, como o Ministério Público.
Parabéns Zile, pela sua preocupação. Ainda que você não se considere um especialista, você demonstra uma visão aguda e estratégica de vetores econômicos que sustentam a produção e o desenvolvimento Nacional.
O tema parece complexo, e o é, quando você mergulha no universo da Legislação e Regulamentos que cercam a matéria. Entretanto, acredito que sua simplicidade deve repousar em premissas básicas do Cálculo integro diferencial. Lembram a parte de otimização de funções (maximização ?). Então é isso. O Estado tem direito a impostos, isso é claro, e acredito, ninguém discorda.
Qual é a carga máxima ou ótima? Essa é a questão. Se seguirmos a visão de nosso Ilustre Promotor, corremos o risco de matar a Galinha dos Ovos de Ouro (caso do imposto do quinto - corôa Portuguesa ) e ainda arrecadar menos do que o devido (modelo não otimizado). Se depender apenas do setor produtivo, possivelmente não recolheríamos nada, para fazer frente aos lucros e a concorrência. Cabe justamente aos representantes de nossas instituições Públicas, em parceria com o setor produtivo, fazer a mediação e alcançar de maneira inteligente a carga tributária adequada e otimizada, tornando-a simples, ótima e Maximizada para o Sistema Nacional.
O ponto de equilíbrio é o que se deseja e é o grande desafio. Infelizmente o Brasil, com 40% do PIB na lista de Países de maior Carga tributária mundial, está longe deste modelo e muita energia deve ser despendida neste segmento. Lembro apenas que, quem é considerado Potencia emergente e pretende se consolidar como Líder, essa questão deve ser considerado como prioritária e fundamental.
Existe, sim, parado em nosso congresso, um esboco de Código de Defesa do Contribuinte (no texto, do "pagador de impostos"). Proposta de, acredite ou não, DEM (ex-PFL).
Entre outras idéias, que as multas (que deveriam ser educativas) não cheguem ao absurdo de duas mil vezes o valor da efetiva base do imposto (Se isso não pode ser considerado apropriacão indevida, desconheco o que possa), que o contribuinte seja avisado devidamente (os governos tem os cadastros, não avisa porque as multas se tornaram fonte de receita) dos impostos que deve recolher, que a cobranca de impostos não seja uma ciência a favor dos que tem como pagar consultoria tributária de advogados especializados e possa ser simplificada para o contribuinte da mesma forma que o código do consumidor o faz para os próprios.
Se Tirandentes revoltou-se contra o Quinto, o que causou sua morte, e hoje pagamos mais de 40% de carga tributária (sem a consequente revolta popular), acontece pelo desconhecimento.
Desconhecimento de que os impostos sobre consumo (e não sobre a renda) são a maior fonte de arrecadacão dos Estados (ICMS) e que as contribuicões federais (que incidem indistintamente sobre todos os cidadãos) são mais que 50% da arrecadacão federal, e por ai vai.
Sem contar as "ajudas" custeadas com dinheiro público, na forma de socializacão de prejuizos privados pelos contribuintes, como o PROER, que saneou o sistema financeiro e deixou o rombo com o tesouro (em última instância, com o contribuinte), ou a sanha arrecadatória em contraposicão com a demora no pagamento de dívidas públicas como precatórios, e ainda as vantagens / beneficios auto-concedidas nos poderes legislativo e judiciário (decimo quarto, decido quinto salário, ajudas de custos de todas as formas, férias a granel, ausência de descontos por falhas no exercicio dos cargos, como faltas constantes, demora no seguimento de trabalhos, aposentadorias precoces e cumulativas etc.)
Considero que o texto foi timido, com muitas desculpas do autor por 'não ser sua área'. Considero que impostacão é área de todos os contribuintes e que o governo gastar menos e melhor deveria ser cobrado por todos os cidadãos deste pais 101% do tempo.
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