09/08/2008
Em Debate Especial
Aprimoramento do marco regulatório, após 10 anos de experiência
Dr. José Leite Pereira Filho
PhD, Professor da Universidade de Brasília
1. Marco regulatório atual
Antes de discutir mudanças, vamos passar em revista o marco regulatório atual, em particular, a expedição de regulamentos e normas pela Anatel no sentido de adaptar, ao novo modelo aprovado pela Lei Geral das Telecomunicações (LGT), o arcabouço regulatório herdado do Ministério das Comunicações, em cinco de novembro de 1997.
A LGT estabeleceu o modelo regulatório para o setor de telecomunicações, incluindo políticas públicas e as regras para a privatização. Criou um órgão regulador independente com corpo técnico capacitado e um conselho de cinco diretores, cujos membros são brasileiros natos, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de sua especialidade. Foram estabelecidos três objetivos estratégicos: universalização, competição e qualidade. Ou seja, os serviços de telecomunicações devem ser oferecidos em todo o território nacional, com múltiplos operadores para garantir preço justo e com garantia de níveis mínimos de qualidade.
Ficou evidente naquela ocasião que o foco principal do novo modelo era o Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC). A LGT selecionou, de antemão, o STFC para ser um serviço prestado no regime público. Assim, como serviço prestado no regime público, garantiu-se para o STFC a sua existência, metas de universalização, continuidade na prestação e controle tarifário. Foi criado um Fundo de Universalização das Telecomunicações (FUST), restrito a serviço prestado no regime público, ou seja, ao STFC.
A Anatel, no exercício da sua competência de expedir regulamentos e normas, atuou diligentemente nesses mais de dez anos no sentido de adaptar ao novo modelo imposto pela LGT os regulamentos de lavra do antigo regulador da época estatal, o Ministério das Comunicações. Abordaremos rapidamente essa vasta documentação enfocando os tópicos: regulamentos gerais, STFC, Serviço Móvel Pessoal (SMP), serviços de televisão por assinatura, Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) e espectro radioelétrico.
O Regulamento dos Serviços de Telecomunicações tem como propósito estabelecer regras gerais aplicáveis a todos os serviços, além de interpretar disposições da LGT. O regulamento contém disposições gerais e trata dos serviços prestados no âmbito dos interesses coletivo e restrito.
A Resolução 101 ficou famosa por abordar conceitos essenciais à garantia da competição. O regulamento aprovado por esta resolução conceitua o trinômio que é citado freqüentemente na regulamentação: controladora, controlada e coligada. Mesmo sendo tema de discussões e divergências, a Resolução 101 tem sido de grande utilidade na manutenção do ambiente competitivo.
Vários outros regulamentos gerais foram abordados pela Anatel. Além dos dois acima, citaremos, ainda, os regulamentos de interconexão, de compartilhamento de infra-estrutura de energia elétrica e de petróleo, dos procedimentos administrativos para apuração e repressão das infrações da ordem econômica e de aferição da satisfação dos usuários.
Como serviço prestado no regime público, o STFC é o serviço mais regulado. Optou-se por estabelecer regras comuns ao STFC prestado nos dois regimes, privado e público, com o acréscimo de regras específicas para o regime público.
Quanto à regulamentação comum aos dois regimes do STFC, destacam-se o regulamento sobre a prestação do serviço, o plano de metas de qualidade e o regulamento de remuneração de redes. A intenção é tornar transparente para o usuário o regime de prestação. A qualidade do serviço e a forma de atendimento ao usuário são idênticas, seja a prestadora uma concessionária ou uma autorizada.
Os principais instrumentos adicionais do STFC, prestado em regime público, são o Plano Geral de Outorgas (PGO), o Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU) e os contratos de concessão. O PGO tem como objetivos principais definir o que é o STFC, estabelecer as regiões de prestação (atualmente são quatro regiões), o número de outorgas em cada região e outras disposições. O PGMU estabelece metas de instalação para terminais de uso individual e de uso público, em função do número de habitantes de cada localidade.
Para chegar à regulamentação atual do SMP, a Anatel teve que ser bastante criativa. Inicialmente, existia uma regulamentação do Serviço Móvel Celular (SMC) que era prestado através de instrumento de concessão. A Anatel criou um serviço móvel semelhante ao SMC, denominado Serviço Móvel Pessoal, prestado no regime privado, através da expedição de autorizações. Foram criadas regras voluntárias de migração do SMC para o SMP. Todas as prestadoras optaram pela migração.
O conjunto de regulamentos do SMP inclui, dentre outros, o regulamento sobre a prestação do serviço, o plano geral de autorizações, o plano de metas de qualidade e o regulamento de remuneração de redes.
Existem quatro outorgas distintas para a prestação dos serviços de TV por assinatura: Televisão a Cabo, Distribuição de Sinais de Televisão e de Áudio via Satélite (DTH), Distribuição de Sinais Multiponto Multicanal (MMDS) e Serviço Especial de Televisão por Assinatura (TVA). O serviço de Televisão a Cabo está baseado em lei específica que continua válida, mesmo após a LGT. O serviço TVA utiliza canais de radiodifusão e é um misto de TV fechada e aberta, pois pode transmitir 45 % do tempo nesta segunda modalidade. Dentro da inteira competência da Anatel, estão somente os serviços DTH e MMDS.
A Anatel expediu, em especial, o regulamento de uso da faixa de 2,5 GHz utilizada pelo MMDS, e dois importantes regulamentos aplicáveis a todos os serviços de TV por assinatura: Regulamento para Uso de Redes de Serviços de Comunicação de Massa por Assinatura para Provimento de Serviços de Valor Adicionado, que permitiu o acesso banda larga à Internet, e o Plano Geral de Metas de Qualidade para os Serviços de Televisão por Assinatura.
O único serviço de telecomunicações, totalmente novo, criado pela Anatel foi o SCM. É um serviço com características convergentes que permite a oferta de informações multimídia. O regulamento de prestação do SCM impõe limitações para que não haja conflito com o STFC, a radiodifusão e os serviços de TV por assinatura.
O Plano de Atribuição, Destinação e Distribuição de Faixas de Freqüências no Brasil e o Regulamento de Uso do Espectro de Radiofreqüências são as principais ferramentas de gestão estratégica do espectro radioelétrico.
No Plano, cada faixa de freqüências é atribuída a uma aplicação (fixo, móvel, satélite, etc.), em geral seguindo recomendações da União Internacional de Telecomunicações (UIT). Após a atribuição, a faixa ou parte dela é destinada a um serviço de telecomunicações (STFC, SMP, SCM, etc.). Um exemplo da importância estratégica desse plano: em junho de 2000, a escolha de 1.800 MHz, faixa preferida da tecnologia GSM, destinada ao SMP para a introdução de novas prestadoras do serviço móvel.
O regulamento de uso do espectro é de aplicação geral e disciplina as condições de utilização do espectro radioelétrico. Além desses regulamentos gerais existe uma vasta regulamentação da Anatel sobre a gestão do espectro, pois cada faixa é objeto de regulamentação específica.
2. Problemas do marco regulatório
Antes de analisar deficiências e propostas de aprimoramento do marco regulatório, é de toda justiça enaltecer esse modelo concebido nos anos 90. O foco principal do modelo, universalização do STFC, foi amplamente alcançado. Comunidades com cem habitantes estão servidas com telefone de uso público e acima de trezentos habitantes com telefone individual. Resta pouco a fazer quanto à universalização do STFC. Por outro lado, mesmo sendo prestado em regime privado, houve também ampla universalização do SMP. O número de usuários do SMP ultrapassou em muito o do STFC e até 2010 estará presente na totalidade dos municípios brasileiros.
Neste ponto gostaria de fazer um exercício de identificação de eventuais deficiências no atual marco regulatório. É importante dividir em dois grupos, primeiro as que requerem mudanças em políticas públicas existentes ou a introdução de novas políticas para o setor de telecomunicações, segundo aquelas deficiências vinculadas à regulamentação de alçada, única e exclusivamente, da Anatel.
O fortalecimento do órgão regulador é uma necessidade vital ao desenvolvimento do setor de telecomunicações. Mesmo sendo uma entidade de Estado e independente conforme reza a LGT, na prática tem havido deficiências que impedem o funcionamento ótimo da Anatel. O Conselho Diretor tem funcionado algumas vezes incompleto e o orçamento da Agência tem sofrido cortes significativos, a despeito da elevada arrecadação do Fistel que é a fonte de financiamento do seu custeio.
A LGT criou o FUST atrelado a serviço prestado no regime público. O STFC, sendo o único serviço prestado nesse regime, deveria ser financiado pelo FUST. Entretanto, isso não foi necessário, de vez que no edital de privatização foram impostas as metas do PGMU, com recursos das próprias concessionárias. A deficiência da LGT é vincular o FUST ao regime público. Outras necessidades poderiam ser atendidas como, por exemplo, a universalização do acesso banda larga à Internet. O resultado é que os consideráveis recursos arrecadados pelo FUST ainda não foram aplicados.
A LGT impede a chamada “elegibilidade” que permitiria a cobrança de valores diferenciados para, por exemplo, parcelas da população de menor poder aquisitivo. Uma mudança seria permitir a “elegibilidade” com subsídio da conta telefônica financiada pelo FUST.
Como sobejamente demonstrado em diversos estudos, a arrecadação de ICMS e do Fistel estão muito elevadas, encarecendo as tarifas e, assim, prejudicando a universalização dos serviços de telecomunicações. Em especial, a taxa do Fistel para o SMP é para cada terminal de usuário, o que exerce a função maléfica de freio à universalização deste serviço.
Sendo o serviço de TV a Cabo regido por lei própria, a Anatel não conseguiu harmonizar os diversos serviços de TV por assinatura que, na prática, são idênticos para o consumidor. À vista do dinamismo do setor, a regulamentação de serviços através de lei específica padece do mal da desatualização. O resultado é que o crescimento da TV Cabo, ao contrário dos demais serviços, foi sempre muito inferior às diversas estimativas de penetração deste serviço.
Quando as deficiências são na regulamentação de alçada da Anatel, a solução é mais simples e rápida por independer de mudanças em leis ou decretos. Comentaremos alguns casos de regulamentação, de competência da Anatel, que pode ser aprimorada.
A qualidade dos serviços prestados e o atendimento aos usuários podem, certamente, ser melhorados. Em especial, notamos uma baixa correlação entre os resultados da avaliação pelas metas do PGMQ e aqueles relativos à qualidade percebida pelos usuários. Quanto ao atendimento aos usuários constatamos que a Anatel não está ainda preparada para atender às reclamações no varejo. A participação dos órgãos de defesa do consumidor, mais especializados nesta área, poderia ser de grande valia no serviço de atendimento da Anatel.
Possivelmente uma boa parte dos usuários daria preferência a serviços mais baratos, atendendo a metas de qualidade de menor custo. Uma possibilidade é permitir, através de plano alternativo, que as próprias prestadoras especifiquem os indicadores de qualidade do serviço prestado, os quais seriam fiscalizados pela Anatel.
A Anatel tem sido criticada pela lentidão na arbitragem de conflitos. A falta do Modelo de Custos é responsável pela maioria dos conflitos entre as prestadoras. As disputas em torno de preços e tarifas de interconexão seriam resolvidas de forma mais célere pela Anatel. Da mesma forma, seria mais simples a solução de conflitos quanto ao uso de infra-estrutura de terceiros, incluindo a desagregação de redes - unbundling. De qualquer forma, seria ainda mais eficiente se os conflitos entre prestadoras fossem resolvidos fora da Anatel, uma vez que o usuário, a parte mais fraca, em geral, não é parte dos mesmos. As prestadoras poderiam organizar Câmaras de Arbitragem que resolveriam as disputas com a velocidade necessária, desafogando consideravelmente a pauta da Anatel.
A infra-estrutura do SMP já está bastante difundida a ponto de justificar a introdução de operadores móveis virtuais (Mobile Virtual Network Operator – MVNO). O espectro radioelétrico seria usado de forma mais eficiente e, também, seria reduzida a capacidade ociosa das redes. Observa-se que existe espectro em abundância nas cidades médias e pequenas, pois a largura de banda nessas cidades é igual à das grandes metrópoles. Muitas vezes, cidades de milhões de habitantes têm espectro com a mesma largura de banda de cidades com poucos milhares de habitantes. A Anatel, acertadamente e para aumentar a eficiência, tem destinado freqüentemente o mesmo espectro a vários serviços. Por exemplo, todas as bandas do SMP são também destinadas ao STFC e ao SCM. Agora, com o espectro já autorizado, resta à Anatel permitir seu uso por outra prestadora em caráter secundário, com a garantia de que ela somente perderá a sua autorização se a prestadora detentora do espectro em caráter primário demonstrar à Anatel a sua real necessidade.
Como já mencionado, a Anatel não conseguiu harmonizar os diversos serviços de TV por assinatura. O problema principal reside na lei de TV a Cabo. Entretanto, a Anatel tem competência para criar um novo serviço de TV por assinatura, neutro quanto à tecnologia, como estabelece a LGT, com a única restrição de não se confundir, do ponto de vista tecnológico, com a TV a Cabo. Ressaltamos que, do ponto de vista do usuário, os serviços de MMDS e DTH são equivalentes ao de TV a Cabo. A diferença é tão somente a tecnologia que é transparente ao usuário comum. Aliás, a Anatel no Regulamento dos Serviços de Telecomunicações define um serviço com tais características denominado Serviço de Comunicação Eletrônica de Massa.
O Serviço de Comunicação Multimídia está consagrado como um serviço de alta valia para o acesso banda larga à Internet, e também na prestação de serviços de voz, vídeo e dados. Para incrementar o seu desenvolvimento, é necessária a revisão da regulamentação para dotá-lo de mobilidade, recursos de numeração e, também, para facilitar a sua interconexão com outras redes.
O sistema de outorgas no Brasil está bastante desatualizado. Existem cerca de quarenta outorgas específicas. Á vista da convergência tecnológica, a tendência mundial é de reduzir as outorgas para uma única autorização, como nos países da União Européia, ou para poucas outorgas de classe, uma para cada classe de serviços. A LGT contém disposições favoráveis à redução de outorgas, existindo mesmo um artigo que delega à Anatel a decisão de eliminar a necessidade de outorga em certos casos.
3. Motivação para rever o marco regulatório
Concluímos aqui esse breve exercício de identificação de algumas deficiências do atual marco regulatório. Ressaltamos que não são somente essas deficiências e outras, aqui não mencionadas, que justificam para uma revisão no modelo. Nesses quase onze anos houve significativo avanço tecnológico e, em conseqüência, mudanças na expectativa dos usuários.
Dentre outros, três desenvolvimentos mudaram em muito o cenário que prevalecia na década de 90. Primeiro, o extraordinário desenvolvimento, disseminação e uso da Internet, inclusive para a prestação de serviços de telecomunicações (telefonia usando Voice over IP – VoIP e televisão usando o protocolo IP – IPTV). Segundo, o formidável desenvolvimento das tecnologias sem fio, responsáveis pela enorme penetração dos serviços móveis em geral e, particularmente, nas camadas de menor poder aquisitivo. Terceiro, os avanços da digitalização e das técnicas de compressão de sinais que possibilitam processar e distribuir qualquer informação (voz, dados e vídeo) de forma idêntica.
Atualmente a expectativa dos usuários é outra bem diferente dos anos 90. O usuário de telecomunicações considera assegurada a disponibilidade e prestação do serviço de telefonia, fixa ou móvel. Os anseios do usuário são de acesso banda à larga Internet para obter informação e usufruir as demais facilidades oferecidas por essa rede mundial de computadores.
O novo marco regulatório deve manter os objetivos estratégicos de universalização, competição e qualidade. A mudança principal deve ser quanto ao foco que, sem dúvida, muda da telefonia para dados com a massificação do acesso banda larga à Internet. O acesso universalizado a essa rede mundial passou a ser considerado de importância estratégica para o desenvolvimento e riqueza dos países.
4. Iniciativas de revisão do marco regulatório
O Ministério das Comunicações e a Anatel, entidades especializadas no setor, estão perfeitamente a par dessas mudanças no cenário de telecomunicações e, assim, estão propondo revisão do modelo regulatório. Existem, atualmente, três consultas públicas em andamento. Uma, do Ministério das Comunicações, sobre políticas públicas e duas da Anatel contendo uma agenda regulatória para os próximos dez anos.
Essas iniciativas do Ministro das Comunicações e do Conselho Diretor da Anatel estão bem situadas, tanto no espaço quanto no tempo. No espaço das competências, pois cabe ao Poder Executivo estabelecer políticas públicas e à Anatel a execução delas, e é essa a linha mestra das consultas em tela. Estão bem situadas no tempo, pela necessidade de atualizar o modelo regulatório brasileiro face às mudanças ocorridas nesses mais de dez anos de vigência do atual modelo.
Parabenizamos o Ministério das Comunicações e a Anatel por essa iniciativa de aprimoramento do marco regulatório brasileiro que, certamente, contribuirá para a satisfação dos usuários e desenvolvimento do setor de telecomunicações.
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