Em Debate

Publicado: 29/10/2007

 

 

 

Televisão Digital no Brasil:
Os mitos por trás de uma escolha

Parte 1

 

 

José Roberto Bollis Gimenez

Gerente Geral de Redes da UNESP

Parte 1 :: Parte 2

 

Introdução

 

Muito se tem falado sobre HDTV, o Sistema de Televisão em Alta Definição, cujo padrão foi recentemente definido para o Brasil. Porém, nas diversas vezes que eu procurei alguma informação sobre este assunto, constatei um profundo desconhecimento.

 

Manifestações politizadas e acusações sem fundamento técnico permearam as discussões. Acabei por concluir que meu conhecimento estava muito acima daquele disponível pelas pessoas que normalmente ocupam espaço na mídia, e resolvi apresentar alguns pontos de vista que, acredito, sejam inéditos nessa discussão.

 

Primeiramente é necessário distinguir o que é HDTV e o que é Televisão Digital. Estes dois conceitos estão envolvidos nesta discussão, porém eles significam coisas totalmente diferentes. HDTV é um novo sistema de televisão, cuja principal característica é a qualidade da imagem, representada tecnicamente pela resolução, ou número de linhas que compõe a imagem. No padrão tradicional a imagem é composta por 480 linhas visíveis na tela, enquanto que nos padrões de HDTV este número de linhas chega a 1080.

 

Este refinamento apresenta imagens mais nítidas, com mais definição de detalhes, porém exige mais recursos para seu armazenamento, transmissão e reprodução. Por outro lado, Televisão Digital significa um sistema de televisão em que a transmissão dos sinais e o tratamento das imagens ocorrem no formato digital, e não mais no formato analógico tradicionalmente utilizado.

 

Os sistemas digitais geralmente possuem superioridade tecnológica sobre os sistemas analógicos. Isto quer dizer que eles oferecem uma qualidade superior por menor preço. No nosso mundo, sempre que algo assim acontece determina o desaparecimento do sistema de qualidade inferior, pois ninguém quer pagar mais por algo que oferece menos. Os sistemas digitais somente se tornaram viáveis a partir do desenvolvimento da indústria de circuitos integrados, ocorrida nos últimos 20 anos.

 

Com isso, observa-se uma tendência quase que generalizada de migrar os sistemas existentes, criados com tecnologia analógica, para a tecnologia digital. Assim como ocorre com a Telefonia, também no caso da Televisão, o que dificulta esta transição é a existência de todo um parque criado com equipamentos projetados para funcionar dentro de padrões estabelecidos há várias décadas atrás, quando nem mesmo o transistor era conhecido.

 

No caso do sistema de televisão, a transição da tecnologia para o formato digital representa uma evolução natural que, de certa forma, já vem ocorrendo há algum tempo. Note-se, por exemplo, o desaparecimento dos vídeos cassetes, que gravam os sinais no formato analógico, para dar lugar aos aparelhos de DVD, que oferecem um resultado bastante superior a um custo cada vez menor.

 

Neste particular, fica bastante evidente a vantagem da tecnologia digital, especialmente quando ocorre uma popularização dos produtos, pois o custo de produção cai extremamente. Por outro lado, nas geradoras e retransmissoras de TV, os sinais são processados e retransmitidos na forma digital. Apenas as transmissões para os aparelhos receptores domésticos é que ainda utilizam o formato analógico, devido à ubiqüidade destes equipamentos.

 

Um outro aspecto que incentiva a transição dos sinais analógicos de vídeo para o formato digital é sua maior conformidade com os sistemas de computação e integração com a Internet. Além disso, existe um recurso bastante valioso para a difusão, que é o espectro de freqüências.

 

Um canal de televisão convencional utiliza 6 MHz de faixa espectral, e esta faixa pode ser reduzida para apenas um quarto através da transmissão digital, mantendo-se a mesma definição da imagem. Esta característica representa um grande apelo na competição pelo uso do espectro, pois seria possível multiplicar por quatro o número de canais no espaço hoje reservado para o sistema aberto de televisão, mantendo-se a atual definição.

 

Concluindo esta questão inicial, é preciso notar que existe uma necessidade premente de abandonar o padrão atual analógico de Televisão, seja para manter o sistema na mesma qualidade de imagem, seja para evoluir para um padrão de Alta Definição. Ou seja, a grande discussão que houve para a escolha de um novo sistema de TV foi para a definição de um padrão de Televisão Digital.

 

Este novo padrão de televisão digital abre a possibilidade de se fazer transmissões HDTV, as quais possuem uma qualidade superior de imagem. É claro que a Alta Definição é o grande apelo desta transição e também é fácil imaginar que em breve futuro este sistema deverá prevalecer a ponto de extinguir o existente atualmente.

 

Embora o padrão escolhido realmente disponha de meios para a transmissão de TV na definição convencional, acredito que isto não represente um grande estímulo para a fabricação de televisores digitais com a resolução tradicional.

 

Em linhas gerais, o sistema de televisão atualmente em uso no Brasil utiliza imagens que se enquadram em uma matriz de 480 linhas por 640 colunas, o que resulta em 307 Kilopixel em cada quadro da imagem. O sistema de HDTV utiliza uma tela com um aspecto mais retangular, com a proporção de 9 X 16 ao invés do tradicional 3 X 4.

 

O número de pixeis na tela é dado por uma matriz de 1080 linhas por 1920 colunas, o que resulta em aproximadamente 2 Megapixel por quadro. Em ambos os sistemas ocorre a exibição de 30 quadros por segundo. É fácil concluir que esse aumento na definição da imagem implica em um aumento de quase sete vezes na quantidade de informação, o que significa canais com taxas de transferência ampliadas nesta mesma proporção.

 

Além disso, os conteúdos com vídeo em alta definição também exigem muito mais espaço de memória para serem armazenados. Já existe uma nova geração de DVD, capaz de fazer frente às novas exigências da HDTV e que amplia em várias vezes a capacidade do atual formato de DVD. Também neste caso temos ao menos dois padrões concorrentes disputando este promissor mercado de mídia digital: O HD DVD e o Blu-ray.

 

Como conseqüência de uma maior taxa de transferência de informação, os canais de HDTV também exigem uma maior faixa do espectro de freqüências. Um canal de HDTV normalmente ocupa 6 MHz, que é a mesma faixa até então utilizada no sistema analógico. Dessa forma, a faixa espectral que comporta um canal de HDTV pode comportar até quatro canais digitais de TV com a definição tradicional.

 

O padrão brasileiro de Televisão Digital

 

É possível que o Brasil tenha feito uma escolha acertada no padrão de Televisão Digital. Entretanto, a componente benéfica desta dúvida reside mais no acaso e nas incertezas do futuro do que nos esforços envolvidos na escolha, pois as diretrizes não foram razoáveis e menos razoáveis ainda foram os motivos que pretenderam justificar a escolha com base nestas diretrizes.

 

Não se escolhe um padrão que deverá estabelecer por muitas décadas a forma de fabricação dos equipamentos utilizados por milhões de pessoas em um país sob uma ótica tão imediatista. Este sistema de Televisão Digital será utilizado por nossos filhos, netos e bisnetos. Os maiores usuários deste sistema serão constituídos de gente que ainda nem nasceu.

 

É lamentável ver representantes do governo virem a público mencionar que "existe uma empresa que se comprometeu a fabricar os set-top-boxes por R$ 20,00 a menos caso o sistema X seja escolhido". É claro que existem coisas ainda mais lamentáveis: que o setor público delegue para pessoas sem qualquer conhecimento técnico poderes para decidir sobre assuntos que absolutamente desconhecem.

 

A tecnologia evolui muito rapidamente, permitindo que produtos inicialmente fabricados a um custo elevado se tornem brevemente muito acessíveis. Os fatores que determinam os custos dos produtos devem ser levados em conta com bastante ênfase, porém não os custos atuais, que nada representam em um cenário de médio prazo. Questões de monopólio, reservas de mercado e facilidades de importação são fatores mais preponderantes sobre a determinação do custo dos equipamentos do que o preço de produção atual, que está a apenas um palmo do nariz.

 

Outra idéia estranha que foi bastante disseminada e ridiculamente repetida, é que o padrão a ser escolhido deveria promover a "inclusão digital", significando este requisito que a escolha deveria privilegiar o sistema mais acessível ao público de baixa renda. Eu não deixo de louvar a beleza de coração contida nesta preocupação, mas acredito que essa faixa da população tenha outras prioridades, não relacionadas com a definição de imagem de seus programas de vídeo.

 

A qualidade técnica do padrão a ser escolhido é um item que deve merecer bastante atenção. E neste aspecto o Brasil conta com o benefício de estar atrasado em relação aos países do primeiro mundo, podendo escolher uma tecnologia melhor desenvolvida. Entretanto, deve-se tomar cuidado para que a escolha não seja dominada por um preciosismo tecnicista, pois sabemos que os padrões em uso atualmente atendem às necessidades de seus usuários, sendo cosméticas as diferenças de desempenho entre estes padrões.

 

Outra questão de relevância nesta discussão é a nacionalização tecnológica. O Brasil chegou a desenvolver um sistema de Televisão Digital que recebeu o nome SORCER. Este sistema, que apresenta características similares aos demais padrões existentes em qualidade poderia perfeitamente ser adotado, ficando o Brasil com um sistema de Televisão Digital independente e único no mundo. Contudo, é importante lembrar que uma medida como esta representa a imposição de uma reserva de mercado.

 

Se por um lado privilegia a indústria nacional, por outro lado também cria um isolamento que deixa o mercado consumidor nas mãos de um oligopólio. Além disso, uma decisão deste tipo exigiria o empenho do governo no desenvolvimento do parque industrial brasileiro e no controle de abusos por parte dos fornecedores, visando a proteção dos consumidores. Infelizmente, o Brasil não tem um bom histórico de gerir políticas que favoreçam seu próprio interesse ou o de sua população.

 

E por último, a questão que mais me chama a atenção, que é a exigência de contrapartidas para a adoção deste ou daquele padrão. Eu não entendo por que alguém ou algum organismo externo ao nosso país estaria disposto a pagar para que fizéssemos a melhor escolha. Além disso, se existe um padrão que seja superior, é nosso dever prestigiá-lo, sem que cobremos nada por este ato de reconhecimento. A forma como o Brasil negociou o padrão de Televisão Digital me lembra mais um processo de prostituição do que de escolha de um padrão.

 

É certo que a digitalização do sistema de TV envolverá investimentos da ordem de muitos bilhões de reais, o que é expressivo para a economia nacional. E exatamente por este motivo, esta escolha deveria contabilizar exclusivamente o interesse da sociedade brasileira, e não o de fabricantes e investidores internacionais. A abertura para oferta de contrapartidas acabou reduzindo a definição do padrão de Televisão Digital brasileiro a um leilão em que prevaleceram os interesses econômicos das grandes corporações.

 

O aspecto de maior importância, e que ficou praticamente esquecido em toda a discussão, reside basicamente na essência da palavra "padronização", que deveria significar a busca por um sistema que fosse único no mundo. Qualquer brasileiro que viaja para a Europa levando seu telefone celular entende como foi sábia a implantação do sistema GSM de telefonia celular no Brasil.

 

A adoção de um mesmo padrão por diferentes países representa capacidade de entendimento entre os povos, permite que equipamentos de origens diferentes, produzidos em países diferentes, possam integrar um mesmo sistema. Desnecessário mencionar os benefícios que uma padronização inteligente oferece ao comércio entre países e à integração mundial.

 

Nesse contexto, a padronização de um sistema exclusivo para o Brasil não faz o menor sentido. A padronização deveria se limitar a escolher um dos sistemas atualmente em uso e adotá-lo integralmente. Eventuais modificações no sentido de adaptá-lo à nossa realidade poderiam ser implementadas, desde que não o tornasse incompatível com o sistema original.

 

Existem apenas quatro sistemas de TV digital aberta em uso no planeta: ATSC (adotado nos Estados Unidos, Canadá, México, Guatemala, Honduras e Coréia do Sul), DVB-T (utilizado em cerca de 60 países, incluindo União Européia, Rússia, Índia, Filipinas, Malásia, Arábia Saudita, Turquia, Vietnã, Nova Zelândia, Austrália e Irã), BMD (china) e ISDB (Japão).

 

Qualquer um destes sistemas poderia perfeitamente ser adaptado para o Brasil. Entretanto, é preciso notar que os sistemas BMD e ISDB são utilizados em um único país e não constituem aquilo que deveríamos entender como um padrão de aceitação internacional.

 

A atitude que se devia esperar do Brasil era a de convocar os demais países da América do Sul, talvez utilizando o Mercosul, para eleger um padrão de Televisão Digital a ser implantado em todos os países do continente, talvez corrigindo um erro histórico que foi a adoção do sistema de TV em cores no Brasil. Uma escolha deste tipo iria beneficiar o comércio e muitos outros aspectos das relações entre estes países.

 

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