20/06/2011
Forum Regulatório
Nesta página: Artigo de Luciano Costa, da Caldas Pereira Advogados e Consultores Associados.
O AICE e o papel da Agência Reguladora
Luciano Costa Caldas Pereira Advogados e Consultores Associados
Em 30 de abril passado encerrou-se o prazo para contribuições da Consulta Pública sobre o novo regulamento do Acesso Individual Classe Especial do Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC), carinhosamente batizado de AICE. O AICE não é uma novidade, ele foi criado pelo Decreto n. 4.769, de 27 de junho de 2003, o segundo Plano Geral de Metas de Universalização, e está regulamentado desde dezembro de 2005. A proposta, à época, foi ambiciosa e bem intencionada.
O press release da Agência afirmava “O Aice tem como objetivo propiciar a progressiva universalização do acesso individual, incluindo novos domicílios ao serviço e sendo, também, acessível a todos aqueles que não possuem outra linha telefônica no domicílio e que buscam o controle dos gastos. O controle de gastos é propiciado pela condição de pré-pagamento e pelo não recebimento de chamadas a cobrar.”.
A expectativa era alta, o mesmo texto estimou em 4,5 milhões o número de acessos em dois anos. No entanto, o AICE não funcionou como esperado. Até o final de 2010, o serviço contabilizava pouco mais de 180 mil acessos. Agora, a ANATEL espera com um renovado AICE “universalizar progressivamente o acesso individualizado por meio de condições específicas para oferta, utilização, aplicação de tarifas, forma de pagamento, tratamento das chamadas, qualidade e função social.”.
Dentre os pontos que certamente afetaram o desempenho do AICE destaca-se a tarifa básica para o usuário. O valor da tarifa básica do serviço básico de telefonia é de R$ 28,72, sem tributos. O AICE atual tem uma tarifa básica de R$ 17,23, sem tributos. Segundo a proposta que foi a consulta pública, a tarifa do AICE deve passar para R$ 9,50, também sem tributos. Para conseguir tal redução de valor, a Anatel propõe restringir o AICE aos beneficiários do Bolsa-Família, programa já estabelecido por Decreto, ou seja, adotando a condição de beneficiário do programa como fator de discriminação do usuário de serviços de telecomunicações.
A falta deste fator de discriminação foi exatamente o “calcanhar de Aquiles” da primeira versão. A necessidade de compatibilizar os custos das concessionárias na prestação do serviço – e o seu direito contratual ao equilíbrio econômico-financeiro – com o risco de uma migração em massa de todos usuários para o “telefone popular” impediu, no dizer dos críticos, que se estabelecesse um valor efetivamente acessível à população de baixa renda, pois havia o risco de “canibalização”, pelo AICE, dos demais planos de serviço. Nesta nova investida, a Agência estabelece, desde já, um universo específico de usuários que será exclusivamente beneficiado pela nova classe de serviço.
Há, entretanto, uma questão fundamental que “ronda” o AICE proposto: é possível estabelecer este tipo de restrição sem legislação específica? Não estamos diante de quebra no princípio da isonomia estabelecido pelo art. 3º da LGT? O entendimento sobre como a nova proposta do AICE enfrenta essa questão parece-nos essencial, uma vez que não se prevê para este novo AICE qualquer alteração legislativa. O suporte se daria com base na resolução da Anatel combinada com o Decreto que estabelece o Bolsa-família. Vale lembrar como o tema foi tratado na discussão havida quando da edição do primeiro regulamento, em 2005. O então Conselheiro substituto Jarbas Valente, em sua avaliação do AICE, dedicou considerável parte ao chamado “critério de elegibilidade”. Ele entendeu que o “critério de elegibilidade” era juridicamente possível. Sua análise levou em conta os objetivos das políticas de universalização previstos em lei e a idéia de justiça social e redução das desigualdades que, no seu entender, deve sempre permear a atuação do Administrador.
Disse ele: “A política de universalização [do serviço básico de telefonia] está voltada a realizar a justiça social e a redução das desigualdades, vez que busca a minoração das desigualdades sociais e econômicas, intransponíveis sem a percepção governamental da necessidade de auxílio à parcela desfavorecida, por meio de incentivos externos ao mercado.” Sustentou que não se estaria quebrando o princípio da isonomia pela singela razão de que não se trata de usuários nas mesmas condições, e que o tratamento aparentemente desigual, na verdade busca restituir a igualdade de tratamento pelo Estado, considerando a condição econômica de cada usuário.
No entanto, o Conselheiro, em sua análise, acabou por entender que os critérios de elegibilidade, por se tratarem de questão de política pública, devem ser diretamente estabelecidos pelo Poder Executivo, por meio de Decreto. À época, a idéia do Decreto estabelecendo o fator de discriminação não vingou.
A proposta para o novo AICE tem, coincidentemente, como relator o Conselheiro Jarbas Valente, que funcionou como Conselheiro substituto à época do primeiro AICE. Daí que o Conselheiro certamente tem um conhecimento privilegiado do tema. O AICE proposto tem uma série de características distintas do primeiro, em especial houve considerável redução da tarifa básica, o que só foi possível pela consideração de um critério de elegibilidade, como fica claro pela Análise n. 16/2011, que, ao reproduzir o Informe da área técnica, assim trata deste aspecto da proposta: “Que a minuta de PGMU em discussão, a qual contempla critério de elegibilidade para os usuários do AICE, viabiliza novos rumos para os estudos realizados pela área técnica sobre a matéria, adotando como elegíveis os cadastrados no programa governamental “Bolsa Família”.” (grifamos)
Em outro trecho da análise do relator, reconhece-se que “a Constituição erigiu princípios inafastáveis de erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais e regionais que inspiram todo o ordenamento jurídico, deve também a legislação, como não poderia deixar de ser, orientar-se sobre estes princípios magnos”.
Em resumo, as áreas técnica e jurídica da Agência consideram que o estabelecimento do critério de discriminação, com base no objetivo de universalização previsto na LGT, sobrepõe-se ao princípio legal da isonomia, também previsto na mesma LGT. Sustentar tal conclusão não é tarefa singela.
Não há dúvida de que a maneira segura de estabelecer o telefone social seria por meio de lei (como no caso da Tarifa Social de Energia Elétrica), mas, sem adentrar na questão da legalidade do fator de discriminação adotado, o que se gostaria de pontuar aqui é a atuação da Agência neste tema, pois devemos considerar o que a sociedade espera de uma Agência Reguladora.
De um lado, é possível sustentar que a Agência está indo além da sua competência reguladora ao efetivamente instituir critérios de discriminação não previstos na legislação do setor – ainda que se valendo das regras do bolsa-família. O fato de se referenciar a critério de discriminação já estabelecido em decreto não soluciona a questão, já que, como se sabe, Decreto não supre a Lei.
Por outro lado, não são poucos os doutrinadores que, seja pela idéia de atos administrativos ampliativos, seja pela possibilidade de a Administração, em casos excepcionais, aplicar diretamente preceitos constitucionais, defendem uma certa flexibilidade do princípio da legalidade, que permitiria alguns atos administrativos sustentarem-se independentemente de uma lei específica a suportá-los. Novamente, a discussão não é singela e não tenho a pretensão de aprofundá-la neste brevíssimo texto.
A iniciativa da Agência, de buscar formas de estender o serviço de telefonia básica a um segmento da sociedade que, até agora, se encontra incapaz de arcar com os custos associados ao serviço, merece apoio e elogio. Independentemente da questão técnico-jurídica associada a este tema, é sim papel da Agência Reguladora fazer tudo ao seu alcance para universalizar o serviço público de telecomunicações.
Expor as questões ao debate aberto é a melhor forma de encontrar alternativas para o enfrentamento de questões sérias, como esta da falta de acesso à telefonia básica. A sociedade não espera que o ente regulador – que naturalmente tem um relevante papel a exercer – encastele-se em justificativas técnicas ou legais para evitar enfrentar os temas prementes do setor que regula.
Assim como a questão de telefone popular, como também a questão do recente processo de abertura do setor de TV a Cabo a uma maior competição, merece apenas uma crítica: a demora da Agência em ousar, com base na boa técnica e sempre mirando melhor interesse público, e perseguir – de forma democrática e transparente – as soluções que a sociedade demanda.
Em virtude de um novo projeto profissional, ficarei impedido de prosseguir contribuindo nesta coluna. Agradeço a todos os leitores que dedicaram atenção a este espaço e em especial ao apoio do Teleco.
Comente!
Para enviar sua opinião para publicação como comentário a esta matéria para nosso site, clique aqui!
Nota: As informações expressadas nos artigos publicados nesta seção são de responsabilidade exclusiva do autor.
Newsletters anteriores
Mais Eventos
Mais Webinares