Seção: Tutoriais Regulamentação

 

Bloqueadores de Celular I: Introdução

 

Noticiadas diariamente nos diversos veículos de comunicação, as ações de violência praticadas por facções criminosas ocorridas em todo o Brasil – independentemente da localidade em que nos encontremos, trazem-nos, indiscutivelmente, preocupações e induzem à necessidade de cogentes intervenções estatais.

 

As recentes atuações criminosas desencadeadas ao mesmo tempo em diversas penitenciárias do país trouxeram à tona um questionamento inquietante: como o crime organizado perfectibilizou esta ação em conjunto e de maneira tão perfeita?

 

Surge-nos, de pronto, apontar a utilização de aparelhos celulares como o instrumento desta “organização”. Aliás, o que mais traz apreensão a todos é o fato de observarmos que é de notório conhecimento que tal ferramenta tem sido habitual e sistematicamente utilizada nos estabelecimentos prisionais brasileiros.

 

Muito embora esta situação alarmante haja desencadeado preocupações que levaram o Poder Legislativo a elaborar projetos de lei (PL) com objetivos diversos – por exemplo, como o de criminalizar o ingresso com aparelho celular em presídios sem a autorização da autoridade competente – diante deste cenário, perfectibilizou-se o debate e a idéia de que as Operadoras de telefonia celular, ao permitirem a projeção do sinal celular nas áreas internas dos estabelecimentos prisionais, seriam as responsáveis pela situação e, por essa razão, nada mais justo seria que estas fossem responsabilizadas com a eventual obrigação de instalação, manutenção e atualização tecnológica de bloqueadores de sinal celular em todos os presídios do país.

 

A partir desta idéia, contra a qual o tema-problema do presente trabalho é diretamente vinculado, por uma iniciativa do Ministério Público Federal de São Paulo foi proposta Ação Civil Pública nº 2006.61.19.003733-0 em face da ANATEL e duas Operadoras de telefonia celular, por meio da qual requer sejam impostas a estas últimas as obrigações retro mencionadas, bem como determinar à Agência Reguladora que proceda na regular fiscalização em cada estabelecimento, a fim de verificar a real eficácia dos aparelhos bloqueadores.

 

Certamente é no mínimo plausível que, dada a facilidade do seu acesso nos presídios, percebemos que gradativamente as ações criminosas têm sido planejadas, ordenadas e coordenadas por meio de aparelhos celulares.

 

Contudo, a pretensão de eventualmente impor às Operadoras de Telefonia Celular obrigações desta natureza traz à baila a necessidade de debate sobre discussões específicas sob o ponto de vista jurídico, uma vez que inexiste, até o presente momento, ato normativo nesse sentido no âmbito regulamentar brasileiro, não lhes sendo atribuídas legal e nem contratualmente tais obrigações, tanto em relação ao órgão regulador quanto às concessionárias e autorizatárias.

 

Ao assumir obrigações e encargos típicos do aparelho governamental, as Operadoras sofrerão efeitos significativos sobre a sua gestão organizacional e financeira caso emanado ato normativo com esta especificidade. Algumas dessas conseqüências, por exemplo, decorrem do fato dessas empresas possuírem natureza jurídica de Sociedade por Ações de capital aberto e, por imposição legal, seus administradores têm de prestar satisfações aos acionistas. Além disso, o encargo traria significativa alteração no objeto social destas sociedades, pois que este é o de disponibilizar ou facilitar o acesso ao uso da telefonia celular, e não restringi-lo, o que vai de encontro à finalidade da prestação e, com certeza, necessitaria de uma justificativa contundente aos acionistas da empresa quanto ao dispêndio de valores contingenciados fora do objeto social.

 

A isso, acrescente-se que estas empresas participam de licitações públicas para adquirir a integralidade das faixas de espectros em que disponibilizarão seus serviços, pelas quais pagam valores consideráveis ao Governo. Com essa obrigação de instalação de bloqueadores nos estabelecimentos prisionais de todo o país, haverá incontáveis áreas em que não será prestado o serviço de telefonia, para as quais houve regular procedimento licitatório, sendo que não havia nenhuma consideração a essa exigência no edital. O Governo reembolsará as Operadoras por essas incontáveis áreas em que estas não poderão, efetivamente, prestar o serviço?

 

Pelo fato da Administração Pública desenvolver uma atividade precipuamente voltada à realização de interesses da coletividade, resta claro que, por vezes, no momento de escolher os interesses que eventualmente merecem a tutela, não se verifica se o conteúdo material do ato administrativo emanado – ou a ser emanado, como na situação hipotética considerada neste trabalho – atenta ou não contra outros bens tutelados, consubstanciados em princípios, regras e valores jurídicos.

 

Mais especificamente sobre o tema proposto na presente pesquisa, a questão que envolve o Poder Regulamentar atribuído às Agências Reguladoras apresenta uma característica bem particular, porquanto sua atividade – e, consequentemente, seus atos normativos – é juridicamente condicionada pelos princípios da legalidade, celeridade, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, impessoalidade, igualdade, devido processo legal, publicidade e moralidade, conforme o dispositivo constante do artigo 38 da Lei nº 9.472/97, que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais.

 

Por via de consequência, há discussões acerca da amplitude do poder normativo conferido às agências reguladoras. Criadas com o escopo de controlar as atividades dos respectivos mercados, estas possuem um elevado grau de independência política e administrativa, vez que sua atribuição requer uma posição de imparcialidade em face dos interesses dos usuários, e, principalmente, livre de pressões políticas. E em razão disso, devem exercer suas atividades nos limites da sua competência técnica, sua função regulatória.

 

Bem assim, percebemos que, muito embora o Estado esboce iniciativas intervencionistas com o intuito de definir medidas sistematizadas e objetivas para minimizar o problema – promulgação de leis, estudos sobre políticas criminais etc. – essas medidas, por vezes, não merecem o devido tratamento analítico sob o aspecto jurídico ao desempenhar suas funções.

 

Conforme Bandeira de Mello (2003), e estando em consonância com o objetivo deste estudo, oportuno debater-se o quê e até onde podem as Agências Reguladoras regular algo sem estar, com isto, invadindo a competência legislativa.

 

O presente estudo tem como objetivo avaliar as repercussões no campo do Direito Administrativo Brasileiro a respeito da extensão dos limites do ato regulamentar proveniente das Agências Reguladoras, especificamente aquele que impuser às Operadoras de Telefonia Celular a instalação de bloqueadores de sinal celular em presídios do Brasil. Pretender-se-á realizar uma análise propriamente sobre esse eventual ato administrativo, delineando uma avaliação teórica sobre a limitação à discricionariedade desse ato, traçando pontos sobre a jurídica adequação ou não desse eventual ato normativo proveniente da ANATEL.

 

Conforme o eminente jurista Freitas (2004), o ato regulamentar, por ser de natureza eminentemente administrativa, fica sujeito ao atendimento aos requisitos da validade e fundamentos do ato administrativo, que deve estar harmonizado com o plexo de princípios.

 

A partir do objetivo geral, fez-se necessário o estabelecimento de alguns objetivos específicos da pesquisa, dentre eles, examinar o atual panorama em matéria de expedição de normatizações pelas agências reguladoras, uma vez que há entendimentos diversos sobre a possibilidade ou não de serem expedidos atos normativos pelas Agências Reguladoras que ampliem ou restrinjam direitos e obrigações a terceiros – no caso, as Operadoras – o que seria conteúdo apenas de lei e não contemplado por meio de resoluções normativas.

 

Este tutorial parte I aborda a origem histórica das causas da criação das agências reguladoras, especificamente a partir da adoção dos modelos econômicos assumidos ao longo do tempo e que culminou no processo de desestatizações iniciado nos anos 90 no Brasil.

 

O tutorial parte II colocará em destaque algumas considerações da avaliação das repercussões no campo do Direito Administrativo Brasileiro a respeito da extensão dos limites desse poder regulamentar proveniente das Agências Reguladoras, especificamente comentando sobre a vinculação aos princípios da legalidade e da separação dos poderes, apontando fundamentos bibliográficos que servirão como subsídios à análise sobre o tema, uma vez que suas normas trazem, em si, uma inovação ao ordenamento jurídico, contudo, em princípio, somente relativa a normas técnicas.

 

Outrossim, trataremos da responsabilidade civil do Estado, dando ênfase às questões atinentes à responsabilidade objetiva, procurando desta forma atender o escopo do presente trabalho monográfico, estabelecendo parâmetros para possíveis hipóteses de responsabilização das agências reguladoras e das Operadoras de telefonia celular em razão da ineficácia técnica dos aparelhos bloqueadores de sinal celular em não conseguirem restringir geograficamente a área do presídio, o que acarretaria danos aos cidadãos residentes nas proximidades dos presídios (ausência de sinal celular nas redondezas).

 

Toda a discussão a ser exposta propiciará, por via de conseqüência, uma enorme gama de indagações que contribuirão fundamentalmente para o debate acerca do tema proposto pela presente monografia, sem, de maneira alguma, pretender esgotá-lo.