Seção: Tutoriais Regulamentação
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A Atividade Regulatória do Estado
Como lembrado por Cardoso (2006), as décadas de 70 e 80 foram marcadas pela crise do Estado, que cresceu demasiadamente e perdia, paulatinamente, o controle e sua autonomia em face do aceleramento do processo de globalização, resultando na acumulação de déficits fiscais existentes em praticamente todos os países, principalmente naqueles que adotaram contornos da ideologia do modelo socialista.
Barros Tojal (apud MORAES, 2002) aponta, além dos motivos elencados acima, a súbita alteração na dinâmica financeira entre países e a incapacidade das instituições da Administração Pública adaptarem-se ao ritmo dessa transformação social e econômica.
Diante destes reflexos, esse cenário trouxe à tona um processo de mudança de paradigmas sobre a delimitação dessa atividade, impondo uma nova percepção do papel do Estado, desprendendo-o da ideologia de vinculação ao monopólio estatal, que, no Brasil, foi adotado no governo de Getúlio Vargas, momento no qual foram criados vultosos empreendimentos e de eminente interesse estratégico para o desenvolvimento do país, e que deveriam estar necessariamente sob o controle estatal.
Acrescenta Villela Souto (2003) que esse processo de criação de empresas estatais disparou durante a Segunda Guerra Mundial, quando, por razões de defesa nacional, levou à criação da Fábrica Nacional de Motores (motores de avião), da Companhia Siderúrgica Nacional, da Companhia Vale do Rio Doce e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco.
Em vista dessa situação e dentro de um contexto político-econômico-social de profunda internacionalização e de crescimento gradativo da burocracia da máquina estatal, a trajetória do Estado exigiu alterações na maneira de diversos países implantarem políticas econômicas eficazes e redefinirem a atuação estatal sobre o mercado e sobre a prestação dos serviços públicos. Fez-se necessária, pois, uma revisão das funções até então desempenhadas exclusivamente pelo poder estatal.
Deste modo, Pinheiro (2005) pontuou que a necessidade de intervenção estatal sobre os mercados foi resultado da crescente complexidade técnica em disciplinar as atividades econômicas em consonância com os valores institucionais cada vez mais cobrados e inerentes ao Estado, tais como dignidade da pessoa humana, livre concorrência, adequação dos serviços públicos, dentre outros.
Meirelles (2005) aduz que com a adoção da política governamental de intervir nos mercados e em razão da escolha de se transferir para o setor privado a execução dos serviços públicos – reservando ao poder estatal o controle e a fiscalização desses serviços – houve a necessidade de se criarem, dentro da Administração Pública, instrumentos que desempenhassem exclusivamente essas finalidades.
Afirma Cardoso (2006) que a redefinição do papel do Estado, passando de prestador a regulador e adotando uma atividade precipuamente voltada ao gerenciamento e à eficiência, necessitou da criação de órgãos especiais à promoção da pretendida regulação.
A partir dessa concepção, as agências reguladoras passaram a ter uma função de extrema importância.
Importa para o estudo em andamento, nesta primeira seção, deparar a origem e as influências históricas sobre a atividade regulatória, estabelecendo um paralelo entre as experiências estrangeiras e o modelo adotado no Brasil, especificamente comentando, ao seu final, aspectos atinentes à ANATEL, agência reguladora intimamente relacionada com o tema proposto pela presente monografia.
Igualmente, buscar-se-á explorar, sem pretender esgotar o tema, as principais características que envolvem o manejo operativo e institucional das agências reguladoras no direito administrativo brasileiro, uma vez que o cenário global atual estimula a busca por competitividade, por investimentos internacionais, por segurança jurídica, por estabilidade, por transparência e por um setor regulatório sólido e bastante atuante.
A Transição de Modelos Econômicos como Incentivadora à Atividade Regulatória
Antes de adentrarmos especificamente sobre o tema em comento, importante que realizemos uma breve retomada histórica que culminou na necessidade da criação das agências reguladoras.
A partir do século XVI, verifica-se uma constante evolução no Estado moderno, nitidamente repercutindo nos aspectos da legitimidade e titularidade da produção normas políticas, econômicas e jurídicas. O Estado Absolutista, impregnado de resquícios da era feudal, operava numa monarquia extremamente centralizada, identificada com o poder, com a soberania, com o rei, do qual a vontade, por vezes, definia regras exíguas e vagas, não sendo reduzidas a escrito (CARDOSO, 2006).
O Estado Absolutista, que por opção escolhera a centralização política, teve sua crise iniciada a partir da não-implementação das reformas necessárias ao desentravamento do desenvolvimento do capitalismo na França, cujos resquícios do feudalismo e restrições mercantilistas incrementaram a crise econômica e a miséria entre a população camponesa e urbana. Além disso, o injusto sistema tributário, que isentava o clero e a nobreza do pagamento dos impostos, e o gasto excessivo com a Corte e o exército (NALIN, 19--?).
Com as influências do Iluminismo – que criticava severamente os limites do poder real – a partir da ideia de que cada indivíduo era dotado de uma faculdade de transformar suas vontades em atos e que se desconhecia a diferença entre os cidadãos, houve a mudança para um pensamento político calcado na ideologia de que a própria sociedade seria um organismo econômico, por meio do qual era possível o pleno exercício da liberdade de iniciativa no comércio, com um mínimo de intervencionismo do Estado (VILLELA SOUTO, 2003).
A adoção da ideologia do Estado Liberal, que vigorava no fim do século XVIII e no XIX, dispensava tanto quanto fosse possível a presença do Estado quando da interferência nos mercados e na livre atividade econômica, e a prestação dos serviços públicos, nesse momento, não era prioridade. No campo econômico percebeu-se aplicada uma autonomia de maneira que a todos fosse possível oferecer produtos e serviços à comunidade. Contudo, essa livre iniciativa não significou a total ausência de regulamentação estatal na atividade econômica, uma vez que o Estado atuava em defesa do mercado, eliminando fatores que o desnaturavam, como, por exemplo, cartéis e trustes. Desse modo, havia, de fato, um mínimo de intervenção estatal na atividade privada (BASTOS, 2001).
No mesmo passo, Alexandre e Paulo (apud SUNDFELD, 2008, p. 156) mencionam em sua obra que:
Se o Estado abdicasse totalmente do poder de interferir na prestação de serviços públicos privatizados e na correspondente estrutura empresarial, correria o risco de assistir, passivamente, ao colapso de setores essenciais ao país, como o setor elétrico e o de telecomunicações. O Estado necessita, ainda, impedir práticas anticoncorrenciais, o que não pode, de forma nenhuma, ser deixado ao encargo da ‘mão invisível’ do mercado.
Dentre os principais teóricos apoiadores do modelo econômico liberal, Smith (1996) afirma que essa ideologia se sustenta a partir da plena atividade da ação individual e de limitar o papel do Estado à simples manutenção da ordem e defesa. Acreditava o autor que a harmonia social e econômica resultaria da livre concorrência, trazendo ordem e riqueza aos interesses concorrentes.
A experiência do Liberalismo, que surgiu com a Revolução Industrial, no entanto, evidenciou rapidamente os males de sua adoção, que em vista da livre iniciativa dos mercados, a liberdade de competição criara situações que tendiam à concentração de empresas e incentivavam os monopólios, principalmente no ramo industrial. Em razão disso, acentuou-se a crise social, caracterizada pelo aumento do desemprego, que juntamente com a ocorrência das guerras mundiais formaram as causas que preponderaram para a quebra da rigidez do liberalismo, dando espaço ao surgimento a um maior intervencionismo estatal (VILLELA SOUTO, 2003).
Da mesma maneira, comentam Alexandrino e Paulo (2008) que a partir do fim do Liberalismo, os ordenamentos jurídicos do Ocidente reconheceram a necessidade de que o Estado interviesse em atividades desenvolvidas por empresas privadas e conferisse a este, instrumentos para que pudessem desempenhar diversas formas de intervenção, mais especificamente no setor econômico.
No século XX, houve as primeiras investidas do Estado em assumir um papel de relevância no campo da economia e da estrutura social, cujo fator principal foi a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, que passaram a adotar um regime de centralismo econômico (estatização dos bens de produção), tendência do qual acabou por influenciar diversos países (BASTOS, 2001).
Na realidade, o Estado intervencionista e com características assistencialistas, ao contrário da ideologia liberal, eis que desconhecia a propriedade privada e a livre iniciativa, tomou para si a tarefa de produção pelo desenvolvimento do próprio Estado (VILLELA SOUTO, 2003).
A partir da escolha desta alternativa, a produção de riquezas, que antes competia às empresas privadas sem qualquer ingerência do Estado, passou a ser buscada por este, legitimado a atuar sobre atividades privadas para condicionar o exercício dos direitos dos indivíduos a determinados fins sociais.
Tal modelo, contudo, congregou estruturas estatais excessivas e caras para o atendimento das necessidades da sociedade, aumentando demasiadamente o papel, atuação e principalmente o custo da máquina estatal (VILLELA SOUTO, 2003).
Justen Filho (2006, p. 472) destaca que diversos países influenciados pela ideologia socialista perceberam a desenfreada e desordenada intervenção estatal nos anos 70 e 80, uma vez que a “pluralidade de regras, contraditórias e ultrapassadas, dificultava a realização dos valores buscados” e que “havia um excesso de regulação, o que impedia a obtenção dos melhores resultados”, bem como as reais finalidades precípuas do Estado eram frustradas.
Com o objetivo de expor exemplo, complementa Nalin (19--?) que exatamente nessas décadas o modelo soviético começou a dar sinais de esgotamento, perfectibilizado pela má qualidade dos bens de consumo e em quantidades insuficientes, pela produtividade do trabalho encontra-se em um nível muito baixo e pela adoção da política armamentista, que consumia boa parte dos recursos do Estado.
A partir do exemplo soviético, todo esse cenário conduziu a uma queda da produtividade e principalmente da competitividade – característica do capitalismo – conquanto abandonara o mecanismo da concorrência, levando à gradual desestruturação desse modelo excessivamente intervencionista, provocando a necessidade do Estado provedor de bens e serviços ceder lugar ao Estado regulador.
Como bem analisa Barros Tojal (apud MORAES, 2002, p. 153):
Após a crise econômica mundial em meados dos anos 70, o Estado de bem-estar, que fora implementado com os excedentes da produção desse período, provedor de direitos sociais numa fase de crescimento da economia capitalista no mundo, deu lugar a um quadro de crescimento e ineficácia das antigas estruturas.
Nesta mesma linha, Maria Paula Dallari Bucci, citada por Barros Tojal (apud MORAES, 2002), aponta que acabou por surgir na pauta das discussões de ordem econômica, política e jurídica entre diversos países a oportunidade de redefinição do papel do Estado, que passaria a ter reduzida a sua atuação, tanto no provimento dos direitos sociais (Estado social) como na intervenção econômica.
Todas essas circunstâncias acabaram por gerar a insatisfação da população e fizeram com que fossem cobradas do próprio Estado reformas visando à adequação dos instrumentos administrativos e jurídicos, implementando um Estado mais eficiente e com custos menores e controlados. Tinha-se a ideia de que, para tanto, seria necessário estimular a concorrência e atrair recursos privados para o desenvolvimento estatal.
Diante da incapacidade dos sistemas políticos acompanharem e se adequarem às tendências e exigências do desenvolvimento econômico mundial, a nova ordem econômica internacional apresentou características que manteriam a orientação econômica capitalista, contudo, interconectando-a globalmente, abandonando princípios nacionalistas, incentivando a concorrência, passando a infra-estrutura pública para a privada, exercendo uma regulação sobre as atividades econômicas e sobre a prestação de serviços e, ao mesmo tempo, preocupando-se em melhorar a qualidade de vida dos cidadãos (NALIN, 19--?).
A passagem do Estado produtor bens (social) e serviços para um Estado mais eficiente e regulador, resultado da regulação que se expandiu no final do XX, está intimamente relacionado com o movimento ideológico neoliberal.
Nalin (19--?) acrescenta que foram apontadas dentre as funções desse sistema a de restringir o papel do Estado na garantia dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais e a de privatizar empresas públicas para favorecer o mercado. Aliás, podemos considerar como inauguradores do modelo neoliberal os governos de Margareth Tatcher e Ronald Reagan no início dos anos 80, momento no qual ocorreram profundos cortes de investimentos sociais, bem como preocupação em formar blocos econômicos que ajudassem a suprimir gastos com a circulação de mercadorias e capitais.
Especificamente em relação ao processo de desestatização ocorrido na Inglaterra, a opção adveio de uma concepção filosófica pela qual não caberia ao Estado produzir riqueza, gerar lucros e exercer atividades econômicas. Este papel caberia, sim, à iniciativa privada, que o faria com uma melhor eficiência, e, ao Estado, caberia apenas zelar pelo bem-estar da população (VILLELA SOUTO, 2003).
A adoção desse modelo neoliberalista conduziu a doutrina a sustentar a criação de um novo modelo de Estado, cuja fundamentação teórica foi trazida à discussão, a princípio, pelo jurista Giandomenico Majone em meados dos anos 80. Segundo esse enfoque, afirmou que, na verdade, o Estado social evoluiu e transformou-se em um Estado Regulador, proposta do qual surgiu, dentre suas características principais, a extensão das concepções desenvolvidas na atividade econômica para o setor dos serviços públicos (JUSTEN FILHO, 2006).
Dada a reformulação do papel do Estado na economia e a nova visão de desregulação da ordem econômica, especialmente sobre os serviços públicos, essa modificação na atividade estatal trouxe alterações de relevo no campo do Direito Administrativo, conquanto este teve de intermediar a transição de modelos sem perder de vista o interesse público.
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