Seção: Tutoriais Regulamentação
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A Origem das Agências Reguladoras
Moraes (2002) explicita que as agências reguladoras possuem origem inglesa e foram concebidas a partir da criação de órgãos autônomos, pelo Parlamento, em 1834, com a finalidade de aplicação e concretização dos textos legais.
Conforme salienta Cardoso (2006, p. 96), na Inglaterra medieval, a alta procura por profissionais que ofereciam serviços indispensáveis à população, tais como médicos, dentistas, veterinários etc., fez surgir a necessidade de “obrigar que prestassem universalmente seus préstimos, bem como tabelassem os preços cobrados pelos serviços”.
Em razão da demanda por serviços essenciais ao interesse público, e vendo a necessidade de regular as atividades econômicas dos profissionais com o objetivo de assegurar qualidade e universalidade aos serviços essenciais, o Estado inglês passou a intervir diretamente na prestação desses serviços.
Oportunamente, menciona Aragão (apud CARDOSO, 2006, p. 97) que, a partir do século XIX:
(...) como não havia a ideia de Administração Pública, mas apenas de Governo, quando era editada uma lei para dar conta de determinado interesse público, era concomitantemente criado um órgão para implementá-la. Desta maneira foram criados quangos para as mais diversas finalidades (assistenciais, controle, reguladoras etc.). De acordo com o autor, “Quangos” denomina-se “quasi autonomus non governmental organizations” (organizações não governamentais quase autônomas).
Tais agências, diferentemente do que ocorre com outros países, não são criadas pelo Legislativo, mas, em regra, por cartas reais ou decisões ministeriais.
De acordo com Paulo Ferreira Motta, citado por Cardoso (2006), ao longo do tempo, essas organizações sofreram modificações estruturais quando da implementação da proposta de reforma administrativa pela então Primeira-ministra Margareth Thatcher nos anos 80, que com o seu programa de redução do aparelho estatal e privatizações de empresas públicas acabou por extinguir quangos clássicos e criar novos quangos com competência regulatória. O objetivo precípuo era impor uma maior regulação sobre os novos setores privatizados.
Ao encontro disso, como salientamos anteriormente, na Europa, a Primeira-ministra inglesa foi a responsável pela implementação da mudança ideológica para o neoliberalismo, o que culminou na reforma administrativa na Inglaterra.
Modelo Francês e a Similaridade com o Sistema Regulatório Brasileiro
Conforme Alexandre e Paulo (2008, p. 157), em praticamente todos os países da Europa, o processo de aumento das atividades regulatórias pelo Estado como consequência da redução de seu papel de Estado-empresário e prestador de serviços foi muito similar ao que ocorreu no Brasil. Lá, contudo, a expressão utilizada é “entes administrativos independentes’’ em vez de “agências reguladoras”, embora designe um modelo jurídico muito parecido com o brasileiro.
No sistema europeu, no qual se inspirou o sistema regulatório brasileiro, a Administração Pública possui uma complexa estrutura organizacional, que compreende uma série de órgãos que integram a Administração Direta e entidades que compõem a Administração Indireta (DI PIETRO, 2003).
No entanto, a França, com inspiração romano-germânica e diversa da americana, teve em comum com o Brasil os desafios da adoção dos fluxos de desestatização, da regulamentação e implementação da concorrência. Como no Brasil, a partir das desestatizações, surgiu a necessidade de se criarem agências. Contudo, distintamente do que ocorre nos demais países, as “autoridades administrativas independentes” francesas, como são chamadas, não receberam da lei personalidade jurídica, prescindindo desse conceito para, paradoxalmente, ser-lhes atribuída condição de independência e autonomia (CARDOSO, 2006, p. 123).
Ainda sobre as características das agências reguladoras francesas, Aragão (2003) salienta que a área de atuação destas é mais ampla, não se limitando à regulação de setores econômicos ou de serviços públicos delegados a particulares, incluindo também atribuições de proteção dos direitos fundamentais e dos cidadãos perante a Administração Pública.
Importante referir que essas autoridades francesas constituem uma categoria não prevista pela Constituição e que, por essa razão, não possuem poder regulamentar equivalente ao do Primeiro-ministro, exercendo uma competência normativa inferior à lei, similar a do Brasil (CARDOSO, 2006).
Modelo Americano e sua Autonomia Acentuada
Fonseca (2003) destaca que a experiência da regulação setorial nos Estados Unidos foi ininterrupta, ao contrário do que se procedimentou no Brasil, que acompanhou vários fluxos de entre estatizações e privatizações.
Nesse sentido e guardando relação com a metodologia jurídica adotada nesse país, explica-nos Conrado Hübner Mendes (apud FONSECA, 2003, p. 130) que:
Nos Estados Unidos, ao contrário, as atividades econômicas sempre permaneceram em mãos de particulares. O que ocorreu, gradativamente, foi a necessidade de regulação de atividades que se mostraram de especial interesse da coletividade, os chamados business “affected with a public interest” (negócio afetado pelo interesse público). Aos poucos, então, cada atividade foi adquirindo um regime próprio de regulação. Como o Direito Americano é casuístico, e não codificado, agências foram sendo criadas segundo as contingências econômicas e sociais.
Zimmer Júnior (2008, p. 175) acrescenta que algumas dessas atividades de interesse da coletividade – principalmente a prestação de serviços públicos – paulatinamente, foram merecendo uma atenção especial do Estado, conquanto necessário o estabelecimento de regras capazes de efetivamente impor um padrão de qualidade para a efetiva prestação do serviço público. Sobre o tema, adiciona o autor que esse cenário provocou a criação da Interstate Commerce Comission – ICC, a primeira agência reguladora americana, em 1887:
As primeiras agências reguladoras americanas distam do ano de 1887, quando companhias de estradas de ferro e os produtores rurais vivenciaram um conflito em decorrência da diferença de preços no oferecimento do serviço de transporte. As Assembléias Estaduais tiveram que interferir e legislar, ao estabelecer a margem de lucro para os transportadores, a fim de tranquilizar o mercado.
Afirma Cardoso (2006) que a ICC foi a primeira estrutura administrativa descentralizada com atribuições normativas criada pelo governo, cuja competência era a regulação das atividades atinentes às estradas de ferro naquele país.
A partir do momento de incidência da forte crise na economia americana no início do século XX, até então regida de acordo com os princípios do liberalismo, deu-se origem a uma série de novas agências reguladoras, que acabou por caracterizar o Direito Administrativo Americano como o “direito das agências”, em face da proposta governamental de uma organização descentralizada (CARDOSO, 2006, p. 103).
Contudo, em vista do número enorme de agências norte-americanas criadas por diversas leis, a inexistência na padronização sobre os procedimentos administrativos e decisórios dificultou a efetiva atuação das agências, inclusive quanto à defesa dos particulares perante esses órgãos (MORAES, 2002).
Conforme Di Pietro (2003), a ideia original era de que as agências reguladoras seriam órgãos altamente especializados nos determinados setores de atuação, acompanhada da ideia de neutralidade em face de assuntos políticos. A autora salienta que entre 1965 e 1985, o sistema regulatório americano viu a atuação das agências serem desvirtuadas de suas finalidades justamente por influências políticas, perdendo assim sua autonomia. Por essa razão, houve a ampliação gradativa do controle judicial sobre as decisões das agências e a minoração do seu poder de regular.
Em relação a essas influências políticas que desvirtuaram a finalidade das agências reguladoras, complementa e explica Conrado Hübner Mendes (apud CARDOSO, 2006, p.104) que:
Os agentes privados com seu colossal poder econômico e grande poder de influência, diante de entes reguladores que dispunham de completa autonomia perante o poder político, não encontraram dificuldades para implantar um mecanismo de pressão que acabasse por quase que determinar o conteúdo da regulação que iriam sofrer. Os maiores prejudicados, por consequência, foram os consumidores.
Assim, em meados da década de 80, iniciou-se nos Estados Unidos um processo de reflexão a partir do qual se pretendeu propiciar meios de controle externo conciliados com a atuação independente das agências, tema que ainda encontra debates na Suprema Corte Americana (Mendes apud FONSECA, 2003).
Apesar de as agências reguladoras existirem há muito tempo, surgem, ainda, debates doutrinários acerca da combinação das funções legislativa, executiva e jurisdicional, sendo questionada, especificamente, a violação do princípio constitucional da separação dos poderes. Indaga-se, por exemplo, se o poder Legislativo, ao criar novas agências reguladoras e outorgando-lhes competência para elaborar normas jurídicas, não estaria, dessa maneira, delegando poderes que afrontam à Constituição em vista desse princípio (GUERRA e MONTEIRO, 2007), tema oportunamente abordado no tutorial parte II.
O exercício destas funções quase-judiciais e quase-legislativas exercidas pelas agências reguladoras americanas tem sido objeto de grandes contestações e debates entre doutrinadores.
Atualmente, no direito norte-americano, conforme exposto por Di Pietro (2003, p. 405), as agências reguladoras gozam de certa margem de autonomia em relação aos Poderes. A mais relevante e discrepante característica do modelo adotado no Brasil é com relação à atribuição jurisdicional exercida pelas agências reguladoras daquele país, uma vez que dispõem de uma função “quase-jurisdicional”, no sentido em que resolvem, no âmbito de sua competência, litígios entre os envolvidos na prestação do serviço – seja entre delegatários ou entre delegatários e usuários dos serviços.
Acrescenta Fonseca (2003), esclarecendo, contudo, que se admite o exercício dessa autonomia pela agência desde que garantida a igualdade entre as conflitantes partes no procedimento e, mais, desde que admita posterior controle jurisdicional. Assim, a regra da inafastabilidade de apreciação da questão controvertida pelo poder Judiciário não se revoga quando da ocorrência de eventual lesão ao direito de alguém.
Percebemos que essa regra guarda similaridade com o que consta na Constituição Federal do Brasil, que prevê em seu artigo 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, sendo adotada, então, a unidade de jurisdição, uma vez que a instância administrativa não é a última na resolução dos conflitos.
A ideia de indelegabilidade do poder de normatizar, decorrente do princípio da separação dos poderes, que é rígido também nos Estados Unidos, impede, em tese, que o Legislativo delegue a sua função de legislar a órgãos de outros Poderes (DI PIETRO, 2003).
Sobre a atribuição de poderes normativos às agências reguladoras americanas, questionando exatamente a questão da violação do princípio da separação dos poderes e o da representatividade – uma vez que constitucionalmente é competência do Congresso Americano apenas legislar, salienta Conrado Hübner Mendes (apud FONSECA, 2003, p. 146) a existência de três teorias:
(...) teoria da transmissão democrática, que aceita tal delegação às agências pelo fato de ser o legislador, legitimado constitucionalmente, que cria o ente e lhe transfere balizas de atuação; teoria dos burocratas técnicos, que justifica a transferência por estarem estas agências formadas por técnicos especializados em matérias as quais o Congresso não teria condições de regular; e teoria do procedimento, que legitima a atuação das agências para garantir aos interessados a participação no seu processo de tomada de decisões.
Ainda em relação ao tema, o mesmo autor (apud CARDOSO, 2006, p. 147) salienta como a Suprema Corte vem interpretando a questão do poder quase-legislativo:
O comportamento atual da interpretação jurisprudencial da Suprema Corte Americana tem sido o de analisar, dentro do conteúdo da lei editada pelo Congresso, os tais padrões mínimos que delimitem o âmbito de atuação das agências. Os entes do poder Executivo devem, então, cumprir os fins e objetivos que o legislador estipulou no ato de criação. Para tanto, deve o legislador conferir um mínimo de parâmetros de atuação, que sejam claros e concretos, o que se convencionou chamar de ‘parâmetros significativos’. Tais parâmetros, mais específicos ou mais genéricos, são fundamentais para definir a liberdade de ação de uma agência. Definitivamente, um dos critérios mais importantes para se definir a amplitude ou mesmo a existência de tão discutível “independência”.
Certamente, percebemos que dentre os poderes conferidos às agências o poder de edição de normas é, sem dúvida, o mais questionável na doutrina. Conclui Sérgio Varella Bruna (apud CARDOSO, 2006, p. 117) que:
Pode-se afirmar, portanto, que a tendência atual é respeitar as delegações de poderes normativos a órgãos de poderes executivos sempre que haja meios para controlar a regularidade do exercício da função administrativa, o que pode ser realizado por meio de uma supervisão política (do Congresso ou do próprio poder Executivo), quanto judicialmente, mediante análise das diretrizes predefinidas pelo legislador, expressa ou implicitamente, nas leis instituidoras de tais competências, bem como pela observância de salvaguardas processuais como as contidas no Administrative Procedure Act - APA, (...) que visam conferir, na medida do possível, maior grau de racionalidade aos processos decisórios da Administração.
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